Se estivesse vivo, o pai da poesia assumidamente negra completaria hoje 100 anos de idade
Colaboração: Juliana Costa
Jornalista (1090 MTE /AL)
Fotos: Web
Imagine um homem negro, considerado por intelectuais e crítica especializada como um dos nomes mais relevantes do cenário cultural brasileiro. Imagine-o como uma pessoa consciente da importância de seu papel, mas ligado às suas origens e preocupado com questões sociais. Depois de sua morte seria natural que ele, considerado um gênio, fosse imortalizado através da propagação de seu nome e de sua obra, certo?
Sim, isso seria mais do que justo. Mas não foi o que aconteceu com Solano Trindade.
Nascido no Recife de 1908 e falecido em 1974, no Rio de Janeiro, Trindade foi poeta, ator, pintor e cineasta, além de trabalhar com dança e teatro. Nascido pobre e negro, conseguiu, através de sua arte e seu trabalho, ser reconhecido nacional e internacionalmente, mas hoje está quase completamente esquecido.
Mesmo reverenciado por nomes como Carlos Drummond de Andrade, Darcy Ribeiro, José Louzeiro e Sérgio Milliet, Solano não consta nos manuais de literatura, não é um autor mencionado nas escolas e nem é encontrado com regularidade nas livrarias e bibliotecas.
Prova disso é que mundos tão diferentes quanto os de Carla Maria, 24, auxiliar de serviços gerais e Josbeth Macário, 24, jornalista, concordam num ponto: desde os tempos de escola (ela, em instituição pública; ele, em instituição privada) até hoje, nunca ouviram falar do nome, da obra e da importância de Solano.
“É mesmo uma pena ter de reconhecer que um autor com tantos predicados tenha sido assim negligenciado. Mesmo com todos os meios de popularização dos quais dispomos hoje, ele foi deixado de lado – apesar de toda a produção e de todo o esforço dele pra contribuir pra melhoria da sociedade”, afirma o jornalista. Já Carla faz a seguinte colocação: “Vai ver, isso aconteceu também porque ele era preto. Você sabe, tem gente que discrimina, com ele não ia ser diferente”.
Injustiçado
Apesar das dificuldades editoriais do período, Solano deu contribuições valiosas à produção nacional. Seu maior legado, afirmam especialistas, é ter sido o pai daquela que foi e é chamada a poesia assumidamente negra – a que, como ele mesmo definiu, cantava no “estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo, no povo em geral as reivindicações sociais e políticas e nas mulheres, em particular, o amor”.
Além do quase total esquecimento em que suas contribuições caíram, sua obra até hoje não ganhou numerosas reedições, tal como aconteceu com autores contemporâneos dele. Houve uma tentativa da editora Cantos e Prantos, ocorrida em 2000, com o objetivo de reunir a obra do poeta no volume intitulado Solano Trindade – O Poeta do Povo. A publicação nunca saiu devido a problemas estruturais da pequena editora. Em 25 de junho deste ano, foram lançados os livros Tem Gente com Fome e Poemas Antológicos, em comemoração ao centenário do autor.
Ainda assim, o acesso à obra de Solano é difícil. Para todos os efeitos, quem quiser ler qualquer verso deste autor terá de recorrer a bons sebos ou a uma pesquisa on line.
A presença de uma personalidade artística tão fértil e engajada como a deste autor causava, a um só tempo, admiração e rejeição em diferentes camadas da sociedade brasileira. Exemplo disso é que, mesmo elogiado por tantos artistas e intelectuais, seu trabalho com o Teatro Experimental do Negro recebeu violentos ataques de conservadores. A estréia do TEN, em 1945, foi “brindado” com editorial, no jornal O Globo, que afirmava se tratar de "um grupo palmarista tentando criar um problema artificial no País".
Núcleo de Teatro Experimental do Negro-SP (1951) / Diretor Solano Trindade
Militância
Não foram apenas as artes que ganharam com as contribuições de Solano Trindade. Ainda dentro da esfera da responsabilidade social, o artista contribuiu com a realização de diversos eventos que visavam o combate à desigualdade social e à valorização do negro. Nesse intuito, organizou na década de 1930 o I e o II Congressos Afro-Brasileiros e fundou com Barros Mulato e Vicente Lima a Frente Negra Pernambucana e o Centro Cultural Afro-Brasileiro; na década seguinte, criou o Grupo de Arte Popular e o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, além de lançar o Teatro Experimental do Negro, o Teatro Folclórico Brasileiro (com Haroldo Costa) e a Orquestra Afro-Brasileira (com Paulo Ramalho); já na década de 1950 fundou, com Edson Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro e criou o grupo de dança Brasiliana, que bateu recorde de apresentações no exterior.
Apesar da relevância que seu nome ganhava, ele fazia questão de dar aulas e oficinas para operários, estudantes e desempregados. Seus esforços foram muito importantes e reconhecidos por contemporâneos, o que provocou a reação do conservadorismo reinante na primeira metade do século XX (vide a recepção de algumas instituições da época diante do trabalho do artista) e ainda atuante na segunda metade do período.
Trabalhos
Solano Trindade foi um artista multifacetado. Trabalhou com pintura, cinema, dança, teatro e poesia – esta última, considerada de suma importância por especialistas.
Escreveu os livros Poemas Negros, Poemas de Uma Vida Simples, Seis Tempos de Poesia e Cantares de Meu Povo, todos entre as décadas de 1930 e 1960. Atuou nos filmes Agulha no Palheiro, Mistérios da Ilha de Vênus e Santo Milagroso, além de ter produzido Magia Verde, premiado no Festival de Cannes de 1953. Foi o primeiro a montar a peça Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, e teve seu trabalho com o Teatro Popular Brasileiro elogiado por grupos como a Ópera de Pequim,a Cia Italiana de Comédia e a Comédia Francesa, além dos elogios recebidos de personalidades como Edith Piaf.
Em 1988, o Centro Cultural Solano Trindade (fundado em 1975) publicou o livro Tem Gente com Fome e Outros Poemas.
Homenagens e sessão solene
As homenagens em reconhecimento à importância do artista acontecem pelo país. Em Embu das Artes (SP), foi realizado o Festival Solano Trindade entre os dias 21 e 22 de julho; no Recife (PE), a edição de 1º de julho da Terça Negra foi especialmente feita para homenagear o centenário do poeta; no calendário de eventos do Conselho Estadual dos Direitos do Negro (RJ) consta a comemoração do centenário de Solano Trindade prevista para hoje, 24 de julho.
A Câmara dos Deputados terá Sessão Solene em homenagem a Solano no dia 08 de agosto, às 15h. O deputado federal Vicentinho (PT/SP) fez o Requerimento 2680/08, aprovado por seus colegas de Casa, a fim de que a sessão fosse realizada. De acordo com o parlamentar, é apenas uma “homenagem justa” para aquele que foi chamado de “o vento forte da África”.
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