quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Nota Pública: "Imobiliária Palmares"

Maria Bernadete Lopes da Silva
Diretora de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro



Chama a atenção a intensidade dos ataques que vêm sendo articulados pela mídia contra as recentes conquistas quilombolas. Em caso recente, a Fundação Cultural Palmares foi classificada pelo jornalista Marcos Sá Corrêa, em matéria veiculada no site O ECO, no dia 21/08/2008, "como imobiliária".


Alguns pontos devem ser esclarecidos.


Em primeiro lugar, a Fundação Cultural Palmares não define a posse, ocupação ou a titulação das terras das comunidades de quilombos. Tal competência fica a cargo do INCRA, que atua a partir de um meticuloso levantamento, denominado relatório etno-histórico, socioambiental, cultural e econômico, com um cuidadoso estudo realizado por equipes diversas de especialistas, compostas por historiadores, antropólogos, sociólogos, agrônomos e outros, devidamente qualificados. Os relatórios são apresentados publicamente e podem ser contestados. Portanto, não é a Fundação Palmares que define qual e quanta terra é de domínio de cada comunidade.

Os territórios quilombolas são áreas que têm um caráter diferente das propriedades fundiárias comuns. Não se trata de fazendas, sítios ou chácaras de propriedade individual. As comunidades regularmente tituladas possuem "territórios" definidos em função do uso comunitário da terra e dos bens que ela produz, podendo ser esses bens ligados à cultura material, tais como: plantações, áreas de extrativismo, criação e moradia, ou ainda; áreas de bens ligados à cultura imaterial, tais como: sítios de invocação religiosa e de práticas ancestrais.

Muitas áreas são utilizadas sazonalmente, podendo servir em um período do ano para pesca, caça, coleta de cipós, bambus etc. Isso não implica um uso exclusivo e permanente da terra, diferentemente daquela utilizada regularmente por proprietários ligados à produção comercial ou à agricultura doméstica.

Em segundo lugar, temos um problema conceitual que não está bem esclarecido pela reportagem do senhor Marcos Sá. O que é afinal uma comunidade de remanescentes de quilombo?

Esse talvez seja o maior problema para que possamos entender a amplitude da questão, pois estamos acostumados ao conceito histórico e "engessado" de quilombos, definido pela primeira vez em meados do século XVIII pelo rei de Portugal, dom José II, ao afirmar que quilombos eram redutos de cinco ou mais negros, fugidos onde se encontrassem ou não, fogos e pilões. Daí para os tempos atuais, a palavra quilombo, de origem bantu e com significado diverso daquele que foi fixado na história do escravismo no Brasil. Os quilombos brasileiros têm o seu protótipo definido a partir do clássico modelo de Palmares, mas nunca foram amplamente estudados até período muito recente de nossa história.

Pouco soubemos acerca dos quilombos coloniais e imperiais, uma vez que esses só passavam a ser registrados pelos poderes públicos (leia-se brancos) quando começavam a causar problemas ou eram abatidos pelas autoridades como foi o caso do próprio Palmares.

Acontece que por se tratar de uma sociedade formada por pessoas excluídas socialmente do processo de organização do Estado, marginalizados ou escravizados; os quilombos procuravam distanciar-se ao máximo dos centros onde residiam os senhores escravistas e suas forças policialescas, capazes de causar pesados danos às populações quilombolas. Muitos quilombos ficaram tão isolados que só se teve notícia deles muitos anos após a Abolição, em momentos de avançada penetração da sociedade rumo ao interior do país. Outros têm sido descobertos recentemente.

Contudo, desde a Abolição, o Estado Nacional brasileiro passou a ignorar a questão dos quilombos, como se o problema das comunidades formadas por negros egressos ou foragidos da escravidão simplesmente houvessem se "evaporado" com a assinatura da Lei Áurea, que na prática pouco representou além da certificação de uma libertação tardia e evitada pelo Estado até o último instante.

Em 1988, com a promulgação da atual Constituição, a questão dos remanescentes de quilombos retomou vigor e passou a ser novamente parte de nossa pauta de debates e das medidas de reparação sociais do Estado para com uma imensa parcela de seus cidadãos.

A questão dos quilombos permaneceu omissa e ignorada dos estudos sociais e históricos por muito tempo. Isso levou a equívocos de interpretações, característicos de pessoas com pouco trato na área, como é caso do jornalista em questão, seguro de que o termo quilombolas ou remanescentes de quilombos não se aplica à comunidade assentada em área onde, posteriormente foi criado o Parque do Jaú. Essa visão leiga e amadora da situação é típica dos que se acomodaram à definição conceitual do ensino de História do Brasil, ministrado nas séries do ensino fundamental e médio. Para a maioria, quilombo seria apenas o núcleo de povoamento negro fundado na resistência armada ao escravismo. Essa definição não leva em conta uma série imensamente variada de outras situações, onde comunidades de negros se formaram em momentos diferentes e em condições diversas, mas mantiveram algumas características básicas, como a idéia da resistência, as especificidades culturais e a identidade social coletiva específica.

Quando da Abolição, por exemplo, muitas famílias e grupos de escravos ficaram sem destino, liberados dos trabalhos escravos, foram expulsos por seus antigos proprietários e vagaram por lugares distantes, terras devolutas e em locais ermos fundaram novas comunidades, diferenciadas em sua estrutura, produtividade, hierarquia social e tradições. Essas comunidades se estabeleceram em terras que ficaram conhecidas como "terras de pretos". Na maior parte dos casos, tratou-se de terras devolutas ou não exploradas, algumas vezes muito distantes de qualquer outro núcleo de povoamento, ou, e outros casos, nas imediações de antigos núcleos urbanos e, hoje, portanto, inseridas em pleno contexto de diversas cidades, o que explicaria a existência dos quilombos urbanos.

No caso específico da Comunidade de Remanescentes de Quilombo do Parque do Jaú, no Amazonas, alega-se que esta comunidade se formou em 1907 e que, portanto, não seria possível tratar-se de uma comunidade de remanescentes de quilombo. Ora, sabemos que comunidades de negros formaram-se ao longo de diversos períodos no intuito de resistir às pressões de senhores e proprietários, garantir seu acesso à terra e à sobrevivência de seus valores culturais, tradições e memória social coletiva. Isso ocorreu durante a escravidão e mesmo após a escravidão.

Assim, uma comunidade fundada em 1907, no Amazonas, composta por negros, dotada de identidade sociocultural diferenciada, que se reconhece a si mesma como remanescente de quilombolas atende ao que está estabelecido no decreto nº 4.887, de 2003, que reinterpreta, de forma atualizada e contemporânea, a definição de comunidades de remanescentes de quilombos.

Para se ter uma idéia, basta lembrar a antiguidade da residência dessa comunidade no local onde muito mais tarde foi criado um parque, provavelmente por técnicos que esquadrinharam um mapa, sem nunca tomarem conhecimento da pré-existência de comunidades tradicionais nessas áreas, calculando, no máximo, que, caso elas existissem, seria possível, fácil e viável o seu remanejamento. Tudo em nome do ecológico.

Vale ressaltar que, em muitos desses casos, as autoridades ambientais não se deram ao trabalho de sequer pensar em remanejamento dessas populações, como atesta o trágico caso da criação, em 1982, da REBIO Guaporé, em Rondônia, que extinguiu diversas comunidades de negros e de índios que viviam há séculos na área em que a reserva biológica foi implantada. Somente uma única comunidade de negros remanescentes de quilombos permaneceu e ainda luta por seu direito constitucional de permanecer na terra em que seus antepassados se instalaram ao fugirem dos horrores da escravidão a partir do século XVIII. No caso em pauta (Comunidade de Santo Antônio do Guaporé), não houve plano de remanejamento, de reinstalação ou de indenização. Todos os moradores seriam expulsos indo para onde bem entendessem, como aconteceu com as demais comunidades que viviam na área, como o povoado do Limoeiro, Bacabalzinho e outras. Todos foram expulsos, ninguém foi reassentado, ninguém foi indenizado.

Hoje não se questiona o reassentamento, isso é inviável, provoca profundos abalos na comunidade, fragmenta, divide, anula identidades, provoca dispersões. Basta que cada um se coloque na condição do reassentado ou do expulso de suas terras e de suas casas.

Ainda é importante salientar que essas mesmas comunidades que as autoridades ambientais insistem em remanejar ou, simplesmente, expulsar das áreas que foram redefinidas como de preservação ambiental, sempre foram as principais guardiãs das matas, rios, restingas, mangues e praias das regiões em que viveram. Não é à toa que se quer transformá-las em áreas de preservação, pois, via de regra, são áreas bem-conservadas, justamente porque foram mantidas e guardadas por populações que não tiveram como estratégia de sobrevivência a devastação dos ecossistemas das regiões em que vivem.

Assim, ao nos posicionarmos na Fundação Cultural Palmares, de forma inequívoca e inquestionável a favor dessas comunidades, claramente caracterizadas como remanescentes de quilombos, nos colocamos a favor do meio ambiente, pois tais populações sempre o preservou. Posicionamo-nos pela vida, tanto dos ecossistemas, quanto de toda a sociedade, mas, principalmente da vida das populações remanescentes de quilombos, historicamente excluídas, perseguidas e aviltadas, e que, atualmente, passam por outro tipo característico e novo de racismo, o racismo ambiental.

É pena que profissionais de gabinete, que conhecem a realidade do país por meio de imagens, mídia, reportagens ou outros meios, não se prontifiquem a conhecer essas mesmas realidades "in loco", passando pela singular experiência de conhecer o dia-a- dia e os modos de vida de tais populações, antes de propor seu remanejamento, sua expulsão ou remoção.

A Fundação Cultural Palmares deplora a superficialidade dos conhecimentos do jornalista Marcos Sá Corrêa acerca das comunidades de remanescentes de quilombos, especificamente no caso da Comunidade do Jaú, no Amazonas. Reafirma que não se caracteriza "como uma imobiliária", que tal "adjetivo", mais uma vez evidencia a superficialidade do conhecimento do repórter acerca dos trabalhos realizados por esta instituição.

Por fim, reafirmamos nosso compromisso com as populações de remanescentes de quilombos de todo o país e lembramos que, embora já se tenham passado 120 anos da Abolição formal da escravidão no Brasil, ainda falta uma longa caminhada para que a população afro-descendente seja inserida de forma plena nos conceitos de cidadania, e isso inclui o respeito às populações quilombolas e ao seu modo de vida e ao lugar onde sempre viveram. Lutamos pela terra que é de todos e por aquela que, historicamente deve ser certificada em nome das comunidades que a mantiveram, ocuparam, trabalharam e protegeram.

Dessa forma, não só o decreto nº 4.487/03, que garante o direito à autodefinição das comunidades quilombolas, assim como também, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, por meio do decreto n.º 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, e a Convenção n.º 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário por meio do decreto legislativo n.º 143, de 20 de junho de 2002, e promulgada pelo decreto n.º 5.051, de 19 de abril de 2004, que garante o direito à auto-identificação de comunidades quilombolas, assim como o direito à propriedade da terra, determinado pelo Art. 68 do ADCT da CF/88.

E por fim, a Advocacia-Geral da União também já se manifestou sobre o assunto em Parecer nº AGU/MC - 1/2006, aprovado pelo Excelentíssimo Senhor Advogado-Geral da União, na forma do art. 4º, inciso X e XI, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, devendo, dessa forma, ser seguido o entendimento ali esposado pelos órgãos e entidades da Administração Federal, como transcrito a seguir:
"...Como se mostra evidente, a noção de quilombo não é das que se alcança por simples interpretação jurídica já que fortemente dependente de investigações, estudos e pesquisas na área da antropologia, sociologia e história sem as quais não se pode enunciar o exato sentido do preceito estudado. Mesmo sem tomar partido em qualquer das diversas correntes de interpretação antropológica ou sociológica, parece indisputável que quilombo é mais do que simples expressão de um certo território no qual em uma certa época alguns escravos ou ex-escravos, fugidos ou não, se reuniam para viver e resistir contra a recaptura ou contra a escravidão.

Ao contrário, a noção de quilombo que a Constituição parece ter adotado abrange, pelo seu próprio sentido e pelo princípio da máxima efetividade, certamente mais do que isto, pois, ao reconhecer aos remanescentes das comunidades de quilombos a propriedade das terras que ocupam, refere seguramente o universo representativo do fenômeno que originariamente aconteceu por obra da resistência, mas que também se desenvolveu ao longo do tempo formando comunidades com interesses e valores comuns, inclua aí a necessidade de resistir e lutar contra as discriminações decorrentes da escravidão..."
Fonte: Ascom da Fundação Cultural Palmares

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