"Um Congresso Nacional e seus partidos políticos desvinculados tão acintosamente dos sonhos e projetos de justiça social e equidade tornam nosso mundo pequeno, menor. Subtrai, entre todas e todos nós, uma fatia da ética e da solidariedade"
Congressoemfoco
O dia 17 de junho de 2010 amanheceu agitado, com vários pedidos de entrevista e de trocas de informações. Telefone tocando, caixa postal cheia de comentários e indagações. Descontentamento de todos os lados. Afinal, o estatuto aprovado pelo Senado Federal, capitaneado por uma estranha aliança entre o Partido dos Trabalhadores e o Democratas às vésperas de processo eleitoral nacional é bom para quê? Para quem?
Decididamente, não é bom para gente que, como eu, como tantas e tantos, lutamos cotidianamente para garantir que o desejo da sociedade brasileira por justiça se mantenha vivo e sem entraves (por que eles não nos ouviram?).
Também não é bom para aquelas e aqueles que precisam agora viver e fazer acontecer a certeza de que o racismo está mais fraco, que o Brasil pode ser o que um dia desejou ser: uma democracia sem racismo (por que eles não nos seguiram?).
Tampouco será bom para aquelas e aqueles que, como nós, entendemos representação como compromisso. Trabalho legislativo como escuta – diálogo – com a sociedade (onde foi que estes princípios se perderam?).
Quanto à luta contra o racismo patriarcal, esta teve reafirmadas suas razões para existir e seguir em frente na direção de um país melhor, aquele que ainda não existe. Mas que, pela força de nosso compromisso, um dia vai existir – nem que seja para as netas de nossas netas.
Para as descendentes das descendentes de Acotirene e Na Agotime, de Xica da Silva e Mariana Crioula, de Laudelina Campos Melo, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Obassy. Por isso elas lutaram. Para isso herdamos suas lutas.
Foi um dia de indagações: o que significam as mudanças no capítulo sobre saúde? Supressão da obrigatoriedade de registro da cor das pessoas nos formulários de atendimento e notificação do Sistema Único de Saúde (SUS)? Abandono da necessidade de pactuação entre União, estados e municípios para a descentralização de políticas e ações em saúde da população negra? Abdicação da definição de indicadores e metas na política pública? Afinal, o que eles queriam negar? O que pensaram aprovar?
É preciso reconhecer que, num primeiro plano, as decisões tomadas de supressão desses itens parecem ter se baseado em grande ignorância sobre os processos de gestão de saúde. O que precisariam saber? Que em 2006 o Conselho Nacional de Saúde, organismo que por lei tem a tarefa de definir políticas na área de saúde, já havia aprovado por unanimidade esta que um ministro de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, um ex-ministro da Igualdade Racial, senadores do Democratas em aliança com senadores do Partido dos Trabalhadores e muitos assessores deles aparentemente desconhecem: a política nacional de saúde integral da população negra.
Eles também aparentemente ignoravam o fato de que essa mesma política já foi pactuada pelos entes federados na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), também segundo preceitos legais para a gestão de políticas no campo da saúde. Essa pactuação definiu um plano operativo com atribuições diferenciadas e complementares para a União, os 27 estados brasileiros e os mais de 5.600 municípios do país, contendo 25 ações a serem desenvolvidas em quatro anos, com 29 metas a serem alcançadas no período, em duas fases: a primeira, entre os anos de 2008 e 2009, e a segunda, entre 2010 e 2011, com duas prioridades a enfrentar: a) problema 1: raça negra e racismo como determinante sociais das condições de saúde: acesso, discriminação e exclusão social; e b) problema 2: morbidade e mortalidade na população negra.
Possivelmente ignoravam que a assinatura desse compromisso pelo Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) aconteceu em abril de 2007. Tampouco deviam saber de sua publicação no Diário Oficial da União em 14 de maio de 2009 (Portaria 992).
Além do atual desenvolvimento de iniciativas, ainda que iniciais, nas diferentes regiões, estados e cidades do Brasil. Isso, apesar da insistência criminosa do Congresso Nacional em negar financiamento para a saúde e sendo conivente, ou mais, co-patrocinador da ampliação da vulnerabilidade de brasileiros e brasileiras, da manutenção de altas taxas de sofrimento, adoecimento e mortes.
Mas toda a magnitude de sua ignorância se coloca ao considerarem que nós, que sabemos disso porque somos parte da luta que gerou tais conquistas, iríamos permitir que tal irresponsabilidade vá longe demais!
Preciso dizer que reconheço, além das marcas da grande ignorância orgulhosa, fortes sinais de um racismo também orgulhoso de dizer seu nome em público. Pois o que, senão ele, fez com que parlamentares e partidos à beira da obsolescência acreditem que se pode impunemente ignorar os indicadores de saúde da população negra, que contradizem perspectivas de justiça e de direito.
Somente o racismo lhes dá desprezo pelo outro o suficiente e faz com que aceitem a morte de mulheres negras em taxas seis vezes maiores do que as brancas, por causas evitáveis por um pré-natal destituído de racismo e preconceito, elevando as taxas de morte materna no Brasil a patamares escandalosos. Ou que considerem irrelevante a frequência de homicídios contra a população negra ter aumentado de 24.763 vítimas de assassinatos para 29.583 entre os anos de 2000 e 2006, segundo dados do Ministério da Saúde, enquanto que a frequência de mortes de pessoas brancas pela mesma causa caiu de 18.712 para 15.578 no mesmo período.
O que traduz riscos insuportáveis de homens negros, especialmente os jovens, morrerem por homicídio em patamares 2,2 vezes mais altos do que homens brancos. E riscos para mulheres negras 1,7 vez maior do que para as mulheres brancas. E estamos falando em resultados da política de desarmamento e das iniciativas de segurança dita pública!
Isso, acompanhado de maiores taxas de mortalidade infantil para crianças negras, cuja diferença em relação às brancas também aumenta; ou a enorme tragédia do adoecimento mais cedo, de maior vivência de agravamento e complicações por doenças evitáveis ou facilmente tratáveis. E os efeitos devastadores da hipertensão entre nós, com maiores taxas de morte e acidente vascular cerebral e suas sequelas; ou da falta de diagnóstico e tratamento do diabetes tipo 2, que resultam em maior mortalidade, mutilações, cegueira e suas tragédias pessoais, familiares, comunitárias.
Como parlamentares, partidos e assessores puderam acreditar que acharíamos sua displicência, seu descaso, seu desprezo, sua falta de solidariedade e compromisso outra coisa senão racismo?
Por isso respondo a quem me pergunta que, sim, o estatuto aprovado faz mal para a saúde da população negra, ao SUS e à sociedade brasileira.
Não por seus efeitos diretos, pois essa mesma população negra, o SUS (que é feito por pessoas, trabalhadoras e trabalhadores, gestoras e gestores, que buscam fazer bem o seu trabalho) e a sociedade dispõem de mecanismos que não hesitarão em usar para garantir que os avanços já conquistados até aqui sejam mantidos.
Mas, principalmente, porque um Congresso Nacional e seus partidos políticos desvinculados tão acintosamente dos sonhos e projetos de justiça social e equidade torna nosso mundo pequeno, menor. Subtrai, entre todas e todos nós, uma fatia da ética e da solidariedade. Magoa nosso desejo de futuro melhor para todas e todos.
Mas, como costumamos dizer e já faz muito tempo: a luta continua!
Jurema Werneck **Conselheira nacional de Saúde, coordena a Comissão Intersetorial de Saúde da População Negra do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e é representante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB). Texto originalmente produzido para a Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra.
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