segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Artigo: O dia em que a Ufal rejeitou Mandela como patrono




Gerônimo Vicente 
Jornalista e integrante da Comissão dos Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-AL)




Na história da raça negra a sociedade ocidental sempre se comportou de forma hipócrita e agiu conforme a conjuntura político-social e econômica da época, principalmente se esta lhe favorecia. Textos do Brasil-Colônia, por exemplo, exaltam o heroísmo de Domingos Jorge Velho por ter dizimado milhares de negros do Quilombo dos Palmares. Por esse período, documentos também apontavam que Tiradentes e Calabar eram subversivos e traidores, reparação que somente veio a ser feita mais de cem anos depois, ainda assim, nos meados do período republicano.

Hoje a história de Zumbi dos Palmares, Tiradentes e outros tantos heróis que lutaram por liberdade deste país é contada bem mais próxima à realidade.

Com a morte do líder sul-africano Nelson Mandela, o que assistimos por esses dias é uma repetição da hipocrisia de 300 anos atrás. Todos os estadistas do mundo fazem reverência a bravura deste negro que, por 27 anos, ficou encarcerado pelo simples fato de ter lutado pela igualdade racial em um país de maioria negra, cuja uma minoria branca descendentes de ingleses e americanos detinha todos os privilégios.

Evidente que este ato representa um avanço significativo. Mas, muito desses estadistas estão lamentando mais a morte do ex-presidente da África do Sul do que o homem que lutou quase três décadas contra o preconceito racial.

Não é estranho um príncipe William achar que Mandela foi inigualável, quando os reinados de Elizabeth I e II, suas bisavó e avó e apoiaram, financeiramente e, por um longo tempo, o Apartheid?

Imagine que por essas bandas e neste caso refiro-me ao Brasil e ao estado de Alagoas, o comportamento social e das instituições pelos idos de 1970-1980 não foi diferente. Minha geração que transpôs dois séculos e que acompanhou a história de Mandela sabe muito bem a que faço alusão. Tenho um registro pessoal sobre esse assunto tão marcante quanto à emoção, em minha vida profissional ao ver que algumas de minhas reportagens que tiveram repercussão nacional.

O fato ocorreu em janeiro de 1986, durante a formatura da turma de Comunicação Social – habilitações Jornalismo e Relações Públicas da Universidade Federal de Alagoas, período 1982-1985, portanto, em pleno regime militar. O local era o hoje Espaço Cultural da Ufal, na praça Sinimbu, onde funcionou a Reitoria.

Contrariando todas as regras impostas pela universidade, a turma composta pelos, hoje jornalistas experientes e veteranos na área como, Mário Lima, Érico Abreu, Adelmo Ricardo, Marinete Barros, Sérgio Tôrres e outros que me fogem a memória, resolveu indicar como patrono Nelson Mandela, ativista sul-africano preso na África do Sul e sem contato com o mundo, pois sua comunidade no bairro de Sowetto também foi isolada por um muro que segregava brancos e negros.

A relação dessa turma de comunicação com a Ufal, nos quatro anos daquele período não era das melhores. O curso não era reconhecido e o desdém da Reitoria para o caso levou os estudantes à paralisação em todos os anos da grade curricular. Não havia prédio próprio. Ficávamos abrigados no Centro de Ciências Humanas Letras e Artes (CCHLA), cujos professores a toda hora pediam nossa expulsão da área.

O curso de comunicação era um dos que ditavam a condução política dentro do campus e possuía alguns dos melhores quadros do movimento estudantil. Tudo isso, incomodava os reitores indicados pelos sucessivos presidentes da República durante a Ditadura Militar. Eleição direta! Nem pensar.

Por sugestão de alguns colegas e, até por ser o único negro da turma, fui indicado o orador, função não permitida, oficialmente, pela universidade, talvez para que o discurso não saísse da etiqueta imposta pelas regras de Brasília.

No dia da formatura, uma noite de domingo, todos os estudantes do CHLA colaram grau juntos. O ritual solene esteve sob o controle do então reitor Fernando Cardoso Gama, de forma que em momento algum fui anunciado como orador da turma de Comunicação Social. A reação dos colegas de turma mudou o curso da história daquela colação de grau.  Mário Lima tirou-me da cadeira do auditório onde estava e me lançou em meio aos pró-reitores, chefes de departamentos e demais autoridades e avisou ao cerimonial que ali estaria o orador da turma, cujo patrono da turma era Nelson Mandela. Foi então que o reitor reagiu em público ao afirmar que a Universidade Federal de Alagoas não reconhecia Nelson Mandela como patrono da turma de Comunicação. O espanto foi geral, embora fosse comum as instituições públicas federais agirem daquela forma. O reitor então resolveu franquear a palavra, no entanto, sem fazer referência alguma a mim, tampouco ao ativista sul-africano.

Fiz um discurso de vinte minutos contra o racismo, citando algumas personalidades que apesar de terem descendência negra não assumia sua cor, a exemplo do escritor Machado de Assis e recomendei que a sociedade deveria aceitar o negro como ele era, com a cor de sua pele, o cheiro de seu suor, com cabelo enrolado e seus lábios grossos. O sociólogo Joel Rufino, com seu livro “O que é Racismo”, contribuiu muito para esse momento que, coincidência ou não, mudou a concepção da universidade.

Depois do discurso, para o desespero do reitor e pró-reitores, uma longa fila foi constituída para me congratular pelo discurso. Lembrou-me do jornalista Pedro Collor e sua esposa Teresa Collor (que colava grau em história) como um dos casais que atrasou a saída do auditório para me cumprimentar. Anos depois, encontrei Collor na redação da Gazeta de Alagoas que me reconheceu e relembrou o episódio.

Fui destaque no mês seguinte do informativo da Ufal, editado pelo saudoso Rosivan Wanderley e mais tarde, já como funcionário do Ministério da Educação encontrei o reitor Fernando Gama que brincou “não é possível! Você de novo. Parece que onde eu estou, você também está”. Parecia que a universidade se redimia da ação imposta. Gama era aberto ao diálogo, assim como os demais reitores da época. Contudo eles representavam o regime autoritário imposto pelos militares no país.

Com a morte de Nelson Mandela, veio-me a lembrança deste caso que, certamente contribuiu para minha afirmação social, conscientização social e política e que hoje conto para alguns jovens incrédulos que ainda acham que absurdos como esses nunca aconteceram na vida das pessoas negras.

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