Coordenadoras falam sobre a cobertura da temática racial pela imprensa e apontam desafios
Ao chegar a sua terceira edição, o Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento se torna um divisor no cenário de jornalistas e veículos que publicam trabalhos sobre a temática racial na imprensa brasileira. A iniciativa partiu do desafio de incluir na pauta jornalística temas que contribuíssem para a compreensão do racismo na sociedade e rompessem com estereótipos. Em dois anos, já aponta indicadores de sucesso.
Antes, a mídia trabalhava a questão em iniciativas isoladas, lembra Angélica Basthi*, coordenadora do Abdias Nascimento em 2011 e 2012. “Quem não tinha nada (de produção) neste assunto se prontificou a produzir, estava aberto a entender o processo, a importância de um jornalismo mais plural”, disse, sobre a proposta de qualificar as reportagens.
Estreando na coordenação do Prêmio em 2013, a jornalista Sandra Martins* tem metas prioritárias. Entre elas, a continuidade da tarefa de sensibilizar os profissionais de comunicação, de todas as mídias, por meio de parcerias com organizações de mulheres negras e de mulheres jornalistas, além da criação de um banco de dados para organizar informações sobre mídia e racismo no país.
“Há um problema na pauta com recorte de gênero e raça e na maneira como o tema é apresentado, sobretudo na forma de imagens estereotipadas”, afirma. Para Sandra, o jornalismo precisa dar visibilidade à população negra e suas questões, de forma positiva e equilibrada. “Os profissionais de comunicação têm dificuldade de olhar seu próprio País quando o tema é racismo”, completou.
Na entrevista a seguir, Sandra Martins e Angélica Basthi, ambas coordenadoras e fundadoras da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (2003), do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro (SJPMRJ), falam sobre a criação do Prêmio e apontam desafios para a cobertura jornalística sobre racismo no País.
O Prêmio foi uma iniciativa inédita. Em que se cenário ele surge?
Angélica - O prêmio está contribuindo para as mudanças no perfil do jornalismo brasileiro. Sabemos o quanto é difícil l conseguir espaço para esse tema nas redações e conquistar a aprovação dos editores. Antes do prêmio, víamos iniciativas isoladas. Ninguém tinha ideia ou noção quem eram e onde estavam os profissionais que produziam nessa área. Conseguimos identificar quem são estes jornalistas, o que estão produzindo, onde e como estão produzindo. E ainda trazemos a proposta de qualificar cada vez mais essa produção. O prêmio coloca o desafio para o jornalista produzir matérias com qualidade e valoriza o veículo que as publique. A longo prazo, este processo será um ganho para o jornalismo e para a sociedade brasileira.
Qual avaliação faz da recepção do Prêmio nos dois primeiros anos pelas redações? Alguém torceu o nariz?
Angélica - A receptividade foi muito boa. Em 2012, com o apoio das Cojiras e do Núcleo de Jornalistas Afro-brasileiros do Rio Grande do Sul, fomos a sete cidades, conversamos com jornalistas, desde repórteres a editores. As pessoas se mostraram muito receptivas: quem não tinha nada (de produção), neste assunto, se prontificou a produzir, e estava aberto a entender o processo, a importância de um jornalismo mais plural. Mas claro que isso ainda é uma leitura bastante inicial. É um breve diagnóstico deste diálogo que passamos a travar com a imprensa no país, porém significativo, já que não havia antes nenhum parâmetro.
Como o prêmio pode influenciar os jornalistas?
Angélica- É preciso reconhecer que, às vezes, o jornalista não está preparado para cobrir temas como este . Por exemplo, pode não saber identificar quais são as reportagens aptas a concorrer ao prêmio ou porque não entende ou porque ignora a realidade e as dinâmicas que afetam a população negra. O Prêmio Abdias Nascimento busca estimular um novo olhar do jornalismo para a realidade que está aí. As pautas sobre a temática racial estão pipocando e não ganham a atenção que merecem – como a mortalidade materna de mulheres negras. Existe um tratamento desigual para populações historicamente discriminadas neste país que precisa entrar na agenda. O prêmio propõe repensar essas práticas.
Em quais áreas, da comunicação, é preciso avançar para dar visibilidade positiva ao tema e incluir a pauta racial nas redações?
Angélica - Em geral, a mídia toda tem dificuldade com essa temática. O entretenimento, onde entram as telenovelas e os programas humorísticos, também a publicidade são alguns exemplos disso. A mídia precisa passar por um processo de aprendizado e repensar suas práticas. O cenário permanece sem a diversidade e a pluralidade que são características da sociedade brasileira. Daí a importância de uma premiação como esta.
O Prêmio tem uma categoria especial de gênero. O que levou a essa preocupação? E a criação da categoria Mídia Alternativa/Comunitária?
Angélica - O Prêmio Especial de Gênero Antonieta de Barros buscou dar visibilidade a questões que afetam as mulheres negras, como a mortalidade infantil. Outra questão é quebrar estereótipos que afetam as mulheres negras. E o objetivo da categoria de mídia alternativa e comunitária é estimular o que já existe neste campo, e também valorizar jornalistas que trabalham nessa área.
Quais os desafios o prêmio ainda coloca para o jornalismo?
Sandra - Desde o primeiro momento o desafio é a mudança de paradigma, um jornalismo plural, que reflita a diversidade brasileira. O Prêmio é um instrumento que sensibiliza redações que investem em reportagens qualificadas e os próprios editores, que observaram a oportunidade de dar publicidade a própria gestão, ou seja, de ter pautas valorizadas como a de outras editorias. Mas nós ainda não conseguimos arranhar a dificuldade que os profissionais de comunicação têm em olhar seu próprio País quando o tema é racismo. Em Manaus, por exemplo, um repórter nos escreveu reclamando que não há negros entre a população local. Essa é uma das percepções que pretendemos mudar.
O Prêmio quer envolver a sociedade civil este ano. Como essa intenção pode dar suporte ao prêmio e ao tema na imprensa?
Sandra - O Prêmio é uma iniciativa que conta as demais Cojiras pelo país e do Núcleo de Jornalistas Afro-brasileiros, do Sindicato do Rio Grande do Sul. Uma das nossas apostas este ano, para ampliara a abrangência, é envolver organizações de mulheres negras e de mulheres jornalistas. A ideia é sensibilizar para reportagens com recorte de gênero e raça, que podem ser premiadas na categoria Especial de Gênero Jornalista Antonieta de Barros. Todas essas organizações têm uma ampla atuação na promoção de direitos humanos e podem destacar temas que podem ser abordados pela imprensa local. Há problemas na pauta com recorte de gênero e raça e na forma como o tema é apresentado, sobretudo em imagens estereotipadas.
A formação dos jornalistas, por ser conduzida em padrões eurocêntricos, também atrapalha na condução de pautas sobre o tema?
Sandra - Há uma melhora, mas ainda está bastante aquém. A mídia dissocia o racismo da questão da violência urbana, dos assassinatos, por exemplo, e isso não é debatido nos cursos. O jornalista tem que aprender a lidar com isso, a fazer pergunta: a pesquisa tem recorte de raça? Checar os dados, ver onde estão as diferenças. As pessoas estão começando a ser convencidas que o Brasil tem uma rica diversidade que não está na TV. Uma TV da Escandinávia tem mais negro que a nossa. É lento o processo, mas o jornalista brasileiro começa a observar este tipo de coisa.
Quais os resultados esperados nesta edição?
Sandra - Esperamos grande participação das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Fomos muito bem recepcionados no Amazonas, no Ceará, em Mato Grosso, estados onde nem há Cojira. Com uma aliança entre a sociedade civil e os sindicatos de jornalistas locais, o Prêmio tende a avançar pelo interior do Brasil.
O Prêmio está pensando a criação de um banco de dados. Por que essa iniciativa é importante?
Sandra - O banco será um projeto mais adiante. Estamos, por ora, organizando informações. A ideia é que cada Cojira mande, independentemente das inscrições, informações locais, como artigos sobre racismo, quilombolas, desigualdades, sobre a temática e sua repercussão na mídia de seus estados. Será o maior banco de dados do Brasil sobre mídia e racismo, que interessará também a pesquisadores. Pois, no Brasil, ainda temos carência na sistematização dessas informações.
* Angélica Basthi é escritora, jornalista e mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Pós-graduada em História da África e Gestão em Direitos Humanos pela Universidade Cândido e autora do Guia para Jornalistas sobre Gênero, Raça e Etnia, publicado pela ONU Mulheres e pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
* Sandra Martins é jornalista da Cooperação Social da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, ENSP/Fiocruz, cursa pós-graduação em Docência em Ensino Superior pela Vez do Mestre pela Universidade Candido Mendes e tem Formação em História Cultura Afro-Brasileira Africana pela Ágere Cooperação e Advocacy.
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