Alunos faltam às aulas ou até deixam a escola após sequência de humilhações cometidas pelos colegas de sala
Por: Flávia Amaral / Tribuna Independente
Foguinho, Carvão, Chocolate, Negueba. Esses apelidos são rotina na vida escolar de muitos alunos que pagam caro por terem a pele de cor negra. E é para erradicar das salas de aula esse tipo de preconceito que foi sancionada a Lei Federal 10.639 de 2003 que entre outras determinações obriga as unidades de ensino a inserirem na grade curricular uma disciplina específica sobre as relações étnico-raciais.
Mas, em termos de adesão, o país ainda engatinha: a lei está em apenas 20% da rede de ensino. E em Alagoas apenas uma faculdade particular, a Faculdade Integrada Tiradentes (FITs), adotou a lei em suas práticas pedagógicas.
E enquanto essa e outras medidas não se tornam realidade, o preconceito racial segue fazendo cada vez mais vítimas e acirrando a problemática da já preocupante evasão escolar. Num efeito dominó, até mesmo recursos do Bolsa Família estão sendo comprometidos.
Acuados pelo preconceito, alunos como Jorge (nome fictício), da Escola Rosalvo Lôbo, na Jatiúca, sequer têm postura altiva em sala de aula. Sentado logo à frente da professora, em uma das primeiras carteiras, ele pouco fala e de cabeça baixa diz não se importar com as frequentes humilhações a que é submetido por colegas de turma, num exercício quase que rotineiro.
Foi a colega de turma quem detalhou o contexto de agressão vivenciado pelo estudante. Muitas vezes, ela mesma tem que intervir, já que ele não costuma esboçar qualquer reação. “Ficam chamando ele de Chocolate, Negueba. Eu não gosto disso e mando parar porque ele fica quieto, aguenta calado. Um absurdo!”, diz a colega com ar de revolta.
Ela conta que as agressões não são apenas verbais. Há quem chegue na sala de aula e mande Jorge desocupar a cadeira para que um outro aluno sente. “Eles dizem: sai Negueba, sai. E ele sai”, lembra. Cabisbaixo, Jorge ouve todo o desabafo da amiga e se restringe a dizer que simplesmente não liga.
Mãe perdeu Bolsa Família após 37 faltas do filho
Foi fora da sala de aula, na casa de Jorge (nome fictício), que a reportagem constatou que ele não só se abala com a atitude dos colegas, como está se afastando da escola. Aluno média 8, há algum tempo ele vem faltando às aulas, e as ausências – até então injustificadas para a família – impactaram também no estreito orçamento doméstico.
O estudante vive em uma pequeníssima casa de dois cômodos, na Grota do Cigano, no Jacintinho, com a mãe - a diarista Liliane Cardoso dos Santos, a avó - de mesma profissão, Maria de Fátima Cardoso, e ainda o irmão Antônio. Sem um pai presente, os custos da casa são bancados por faxinas esporádicas e com o recurso do Bolsa Família, no valor de R$ 134.
Não bastasse o dinheiro contado, a família agora está com o benefício suspenso devido às 37 faltas acumuladas por Jorge no últimos meses. “É quando eu não estou mais aguentando tanto xingamento, apelido, que prefiro não ir para a escola. Aí não vou. Eu não pedi pra ser assim... preto”, lamentou Jorge, que diz ver cada dia mais distante o sonho de ser advogado.
Para ele, em todas as escolas, os colegas dispensarão a ele o mesmo tipo de tratamento que ele tem hoje. “Já ouvi de outros amigos que são pretos que é do mesmo jeito. Então nem adianta mudar de escola”, conclui.
A apatia aparente quanto às humilhações que o estudante sofre é explicada pelos conselhos recebidos pela mãe. “Ele chega em casa reclamando que ficam colocando esses apelidos nele e eu digo sempre que ele entregue a Deus e não brigue com ninguém. Entre na escola, estude e venha embora. Além de pretos, minha filha, somos pobres”, resumiu Liliane enquanto o filho ouvia a tudo atento, mas ainda de cabeça baixa.
Albinos também são alvo de discriminação
O racismo não se restringe àqueles de cor negra. No outro extremo, ele também se faz presente. Jovens com albinismo – pele extremamente branca pela ausência de melanina - também são alvos de chacotas e discriminação. O professor de jiu-jitsu, Tales Rocha, vivenciou isso na prática.
Ele é negro e embora nunca tenha vivenciado situações de racismo direcionadas a ele, já assistiu a inúmeros casos e em alguns deles partiu em defesa da vítima. Um rapaz albino teria sido covardemente humilhado por dois colegas, na quadra de esportes da Escola Rosalvo Lôbo.
“Ele foi xingado várias vezes e eu tomei as dores dele. Fomos parar na direção e acabamos suspensos, os quatro”, contou o professor, que diz acreditar que uma vez adotada a Lei do Racismo, nas escolas, situações como essas tendem a se tornar menos frequentes.
Menina deixou escola após "pressão"
Basta visitar uma escola para que numa conversa rápida com alunos fique evidente a importância de a temática do racismo ser encarada como prioridade e entrar na pauta de discussão de gestores da Educação.
A sala do oitavo ano da Escola Theonilo Gama, no Jacintinho, não difere das demais, como afirmou Valéria Silva, que acompanhou o drama de uma colega negra e de cabelo crespo, que deixou a escola. “O cabelo dela é bem ruim, por isso ela sempre tem que ouvir o pessoal chamar de Foguinho. Todos da sala mexem com ela e ela já chegou a chorar muitas vezes”, lamentou a estudante.
Fomos até a escola para conversarmos com a vítima, mas era tarde. Segundo a diretora Gilvanete Matias da Silva, a jovem saiu do colégio por não suportar a pressão dos colegas pelo fato de ela ter o cabelo crespo. “Ela vinha à direção, a gente conversava com os colegas, mas depois acontecia de novo. Ela chegou até a colocar um aplique no cabelo, mas em vão”, contou.
O drama foi acompanhado por diversos alunos. João Cavalcante, 13, lembra o quanto era difícil para a estudante se manter em sala de aula. “Vi várias vezes a bichinha chorar. Ela brigava às vezes e ia na diretoria, mas paravam de mexer com ela naquele dia. Depois voltava tudo de novo”.
A Lei do Racismo nas escolas ainda é ilustre desconhecida de boa parte dos estudantes de escolas públicas ou particulares. Mas quando colocados em contato com a essência da lei, a matéria divide opiniões. Em uma conversa com quatro estudantes negros, permearam visões bem diferenciadas, mas entre elas um consenso: o racismo precisa ser combatido.
Para Luigi Nelson de Oliveira, 15, uma disciplina não resolveria um problema tão sério. “Somos todos iguais e não deveria ter matéria pra gente saber disso e respeitar o outro. Se não acontece isso hoje, não vai ser uma matéria que vai mudar”, analisou. Ailton José, também com 15 anos, é mais otimista. “Resolve, sim, estudar, estudar, até aprender o que é certo e o que é errado”. Mais ponderado, João Cavalcante - que assistiu às humilhações contra a colega de turma que acabou indo embora da escola - admite que a matéria pode não resolver, mas ajuda a melhorar.
Professores presenciam casos e defendem retorno de matérias
Quem teve na grade escolar matérias como Organização Social e Política do País (OSPB) e Moral e Cívica deve entender o porquê de os professores entrevistados pela reportagem defenderem a retomada das disciplinas. As docentes Eliana Ribeiro, Sandra Maria Ertel e Joana Cesárea foram unânimes ao afirmar que presenciam muitos casos de racismo onde trabalham e que o diagnóstico passa pela educação doméstica, aliás a falta dela.
Para elas, além da falta de base familiar para se firmar valores por parte do aluno há também a falta de disciplinas que seriam uma extensão desse trabalho. “Tiraram da grade matérias como OSPB, que ajudava no debate e no esclarecimento sobre a conduta correta de um ser humano e um cidadão”, analisou Eliana Ribeiro.
Sandra Ertel lembrou ainda do relevante papel da orientadora educacional, que segundo ela atuava na busca de solução para os problemas e dificuldades dos alunos na escola, dividindo até mesmo problemas de casa.
Sobre a lei que vai inserir nova disciplina, Sandra Ertel foi além. “Não deveria ser uma disciplina para abordar preconceito racial isoladamente. Há vários tipos de preconceito e pelo que estamos vendo sobre a nossa juventude o ideal seria uma disciplina que discutisse a diversidade”, sugeriu.
Na Escola Rosalvo Lôbo questões raciais já são parte da prática pedagógica, mas sem um professor ou disciplina específicos. De acordo com Joana Cesárea essa antecipação à lei tem a ver com a importância de se respeitar o outro dentro e fora da escola. Durante a conversa, as professoras lançaram o alerta de que não adianta fazer leis e elas ficarem apenas no papel e que a 10.639 é uma das que devem merecer atenção especial do poder público.
Rede pública deveria ter sido pioneira, diz secretária
A secretária da Mulher, Direitos Humanos e Cidadania, Kátia Born, destacou a importância da Lei do Racismo nas escolas e parabenizou a Faculdade Integrada Tiradentes (FITS) por ter sido a primeira, não só em Alagoas, mas no país a implantar a determinação. “Essa lei já era para estar vigorando em todas as escolas e a rede pública deveria ter sido pioneira, mas não aconteceu. De qualquer forma não podemos ficar parados”, criticou.
De acordo com a secretária, um apelo já foi feito aos secretários de Educação e eles se mostraram receptivos à implementação da lei. “Ainda este mês está na pauta de discussão para trabalharmos inicialmente os professores”. Segundo ela, mais de 40 professores da rede pública estão preparados para lidar com a temática em sala de aula.
A reportagem tentou contato com o secretário de Educação, Adriano Soares, durante mais de uma semana, mas as ligações e mensagens não tiveram retorno.
Uma das principais incentivadoras da Lei do Racismo, na Fits, a professora e mestre em Serviço Social, Silmara Mendes Costa, diz que o momento é de uma política de reparação. “Temos que rever tudo o que aprendemos e discutir questões que vão desde o reconhecimento afro-descendente à igualdade de direitos”, defende. Sobre a efetividade da lei nesse propósito, a assistente social diz que é um importante passo, mas que deve haver ações de extensão.
A qualificação dos professores seria um dos pontos mais importantes para o combate do preconceito racial dentro da sala de aula. “O professor tem que estar preparado para lidar com o problema quando se deparar com ele. O professor está na linha de frente”, analisou.
A tímida atuação de Alagoas na temática afro-descendente não é o que se pode chamar de uma constante. Há sete anos, o Estado foi apontado pelo Ministério da Educação como referência na questão. Através do ‘Identidade Negra na Escola’ era estabelecido um diálogo com as escolas a partir da qualificação mensal de professores, uma prática extinta pela burocracia na gestão pública.
De acordo com a coordenadora do movimento Raízes da África, Arísia Barros, “a educação antirracista aqui não existe pela ausência de interesse político. Isso é uma ação política e não restrita ao professor”, destacou.
Este é o ano internacional dos afro-descendentes e, ainda de acordo com Arísia, nada aconteceu. Para ela, num panorama nacional, o mapa que se desenha é frágil e pouco suscita algum avanço.
“Alagoas era para apresentar uma outra realidade. Somos a referência máxima da liberdade afrodescendente. Fazemos a terra de Zumbi dos Palmares”, lembrou.
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